Introdução & Nomenclatura do Murici
No vasto mosaico de paisagens que é o Cerrado, existem sabores que definem o lugar. O Murici, de nome científico Byrsonima basiloba, é um desses sabores primordiais. Seu fruto pequeno, amarelo e de aroma penetrante é uma marca registrada da savana brasileira, um gosto intenso e agridoce que evoca memórias de infância, de sucos refrescantes e de doces caseiros. Mas esta planta, também chamada de Muricição ou Murici-do-campo, é muito mais do que um fruto; é um pilar de resiliência, um mestre na arte de sobreviver ao fogo e, em um dos mais belos espetáculos de coevolução, uma flor que oferece óleos preciosos em vez de néctar para suas parceiras aladas, as abelhas.
O nome científico, Byrsonima basiloba A.Juss., é uma descrição precisa de sua forma e textura. O gênero, *Byrsonima*, vem do grego *byrsa*, que significa “couro” ou “pele curtida”, uma referência à textura coriácea e resistente das folhas de muitas espécies do gênero. O epíteto específico, *basiloba*, vem do latim *basis* (base) e *lobus* (lobo), significando “com a base lobada”, uma descrição perfeita de suas folhas, que possuem na base duas pequenas “orelhas” (aurículas) que abraçam o ramo. O nome popular, “Murici”, tem origem na língua Tupi, *mure’si*, que significa “árvore pequena”, um retrato fiel de seu porte arbustivo.
O Murici-do-campo é um tesouro nativo e endêmico do Brasil, uma espécie que é a própria essência do bioma Cerrado. Sua distribuição geográfica abrange o coração do país, florescendo e frutificando nos chapadões do Centro-Oeste, do Sudeste, do Nordeste e em partes do Norte. É uma das plantas mais características e ecologicamente importantes de nossas savanas. Ter uma semente de *Byrsonima basiloba* em mãos é ter a promessa de cultivar um sabor autenticamente brasileiro, uma planta de imenso valor para a fauna e para a cultura, e uma lição viva sobre as mais engenhosas alianças do mundo natural.
Aparência: Como reconhecer o Murici
Reconhecer o Murici-do-campo é identificar os traços de um verdadeiro sobrevivente do Cerrado. A Byrsonima basiloba se apresenta como um arbusto de porte baixo e robusto, geralmente de 0,5 a 1,5 metro de altura, com uma forma de crescimento cespitosa, formando densas touceiras. Seus galhos são grossos e tortuosos, com uma casca espessa que o protege do fogo. A verdadeira chave de sua resiliência, no entanto, está no subsolo: a planta possui um poderoso xilopódio, um órgão subterrâneo lenhoso que armazena água e nutrientes, garantindo sua rebrota vigorosa após as queimadas.
As folhas são sua característica mais distintiva e a origem de seu nome científico. Elas são grandes, sésseis (sem pecíolo), e de textura coriácea, ou seja, duras como couro. A base da folha é auriculada, com dois lobos arredondados que abraçam o caule, a “base lobada” que a batiza. A face superior (adaxial) é geralmente lisa, de um verde-escuro, enquanto a face inferior (abaxial) é coberta por uma densa camada de pelos brancos e lanosos, uma adaptação que reflete a luz solar e ajuda a reduzir a perda de água.
As flores do Byrsonima basiloba são um espetáculo de cor e de engenhosidade. Elas se agrupam em inflorescências do tipo tirso, que são cachos eretos que se projetam acima da folhagem. Cada flor possui cinco pétalas de um amarelo-ouro vibrante, que com o tempo adquirem tons avermelhados. As pétalas são “unguiculadas”, com uma base estreita que se alarga em uma lâmina arredondada. O detalhe mais fascinante, no entanto, são as dez glândulas verdes e proeminentes localizadas na parte externa do cálice. São estas glândulas que produzem o óleo floral, a recompensa oferecida aos polinizadores.
O fruto é a joia dourada do Cerrado. O murici é uma drupa globosa, de 1 a 2 cm de diâmetro. Ao amadurecer, sua cor passa do verde para um amarelo ou alaranjado intenso. A polpa é carnosa, um pouco fibrosa, e envolve um caroço duro (pirênio). O fruto maduro exala um aroma forte, adocicado e inconfundível, que perfuma o ar do Cerrado durante a estação chuvosa.
A semente, ou mais precisamente o pirênio, é o caroço lenhoso que se encontra no interior da polpa. É através deste caroço, que protege o embrião, que a planta viaja, esperando pacientemente no solo até que as condições sejam ideais para germinar e dar início a um novo arbusto dourado.
Ecologia, Habitat & Sucessão do Murici
A ecologia da Byrsonima basiloba é uma das mais belas e complexas histórias de coevolução do Cerrado. Esta planta é uma especialista em prosperar nas condições deste bioma, sendo um componente fundamental do Cerrado *lato sensu*. Ela habita os campos abertos e ensolarados, resistindo ao solo ácido, à deficiência de nutrientes e a uma longa estação seca, graças às suas profundas adaptações.
Sua relação com o fogo é uma aliança de permanência. Como uma pirófita clássica, o Murici-do-campo sobrevive às queimadas graças ao seu xilopódio. A parte aérea pode ser consumida, mas a estrutura subterrânea, rica em reservas, garante a rebrota rápida e vigorosa, um testemunho da incrível resiliência da flora do Cerrado. Na dinâmica de sucessão, ela é um membro permanente da comunidade clímax das formações campestres da savana brasileira.
A interação com seus polinizadores é o capítulo mais fascinante de sua ecologia. As flores do Murici não produzem néctar. Em vez disso, suas glândulas sepaláres secretam óleos florais. Esta recompensa só pode ser aproveitada por um grupo especializado de abelhas nativas, principalmente dos gêneros *Centris* e *Epicharis*, conhecidas como “abelhas coletoras de óleo”. As fêmeas destas abelhas possuem estruturas adaptadas em suas pernas para raspar e coletar estes óleos, que são então misturados com o pólen para formar uma massa nutritiva que alimentará suas larvas. É uma das mais íntimas e especializadas relações de polinização do mundo vegetal, uma dança evolutiva entre a flor e a abelha.
A dispersão de seus frutos é uma grande festa para a fauna do Cerrado. A estratégia é a zoocoria. Os frutos amarelos, aromáticos e nutritivos são um dos principais recursos alimentares para uma vasta gama de animais. **Aves**, como seriemas e emas; e **mamíferos**, como o lobo-guará (para quem o murici é um dos itens mais importantes de sua dieta), raposas-do-campo, tatus e veados, se alimentam avidamente dos frutos, tanto nos arbustos quanto depois de caídos. Ao se deslocarem, eles dispersam os caroços em suas fezes, garantindo a regeneração e a conectividade das populações de Murici por toda a paisagem. A planta alimenta a fauna, e a fauna semeia a planta.
Usos e Aplicações do Murici
O Murici-do-campo é uma planta de uma generosidade imensa, um pilar da cultura e da gastronomia do Cerrado. Suas aplicações vão muito além de sua importância ecológica, sendo uma fonte de alimento, de remédio e de matéria-prima para as comunidades que vivem em seu bioma.
Seu uso mais célebre e delicioso é o culinário. O fruto do Byrsonima basiloba é um ícone da gastronomia do Cerrado. Possui um sabor único, intenso, levemente ácido e um aroma forte e inconfundível, que alguns amam e outros consideram um gosto adquirido. É consumido *in natura*, mas seu maior potencial está no processamento. É a base para a produção de sucos, sorvetes, picolés, licores, geleias e doces cristalizados ou em calda. A polpa pode ser congelada e utilizada durante todo o ano, sendo um ingrediente fundamental que confere uma identidade única a pratos e bebidas do Brasil central. É uma fruta rica em vitamina C, fibras e compostos antioxidantes.
Na medicina tradicional, o Murici também é muito valorizado. O chá da casca e das folhas, ricas em taninos, é um poderoso adstringente, sendo amplamente utilizado para o tratamento de diarreias, disenterias e inflamações da garganta. Também é usado externamente como cicatrizante para feridas e em banhos para tratar infecções de pele.
A casca do Murici-do-campo, por ser rica em taninos, é também utilizada para o curtimento de couro, um processo que confere resistência e uma coloração avermelhada às peles. A madeira, por sua vez, é dura e resistente, sendo utilizada como lenha e para a produção de carvão de excelente qualidade. Seu valor ecológico é incalculável. Como vimos, é uma espécie-chave para a manutenção dos polinizadores especializados e da fauna frugívora, e sua rusticidade a torna uma excelente opção para a restauração de áreas degradadas do Cerrado.
Cultivo & Propagação do Murici
Cultivar um Murici-do-campo é trazer para perto o sabor autêntico e a alma resiliente do Cerrado. A propagação da Byrsonima basiloba a partir de sementes é um processo que exige a quebra da dormência de seu caroço protetor, mas que recompensa com um arbusto rústico, produtivo e de imenso valor ecológico e cultural.
O ciclo começa com a coleta dos frutos, que devem estar bem maduros, de cor amarela-intensa e já começando a cair da planta. O primeiro e mais importante passo é o despolpamento, ou seja, a remoção completa da polpa carnosa que envolve o caroço (pirênio). O pirênio lenhoso protege as sementes em seu interior e impõe uma forte dormência física. Para que a germinação ocorra, é necessário realizar a escarificação mecânica, que consiste em lixar o caroço em um ou dois lados, com cuidado para não atingir as sementes internas. Este processo cria pontos de entrada para a água.
Após a escarificação, a semeadura deve ser feita em um substrato arenoso e bem drenado, em sacos de mudas individuais, a uma profundidade de 2 a 3 cm. A germinação é lenta e irregular, podendo levar de 2 a 5 meses. As mudas devem ser mantidas a pleno sol. O crescimento do Murici é lento, uma característica de uma planta que investe em estruturas de reserva subterrâneas e que está adaptada a um ambiente de recursos limitados. A primeira frutificação pode ocorrer a partir do terceiro ou quarto ano.
O plantio da Byrsonima basiloba é ideal para a restauração de áreas de Cerrado, para a composição de sistemas agroflorestais e para a formação de pomares de frutas nativas. É uma espécie que exige paciência, mas que recompensa com a produção de um dos frutos mais emblemáticos do Brasil, com a atração de uma fauna fascinante e com a satisfação de estar cultivando um verdadeiro ícone da nossa biodiversidade.
Referências utilizadas para o Murici
Esta descrição detalhada da Byrsonima basiloba foi cuidadosamente elaborada com base em fontes científicas de alta credibilidade e na rica documentação etnobotânica sobre a flora e os frutos do Cerrado. O objetivo foi criar um retrato completo que celebra o sabor, a resiliência e a fascinante ecologia desta espécie tão emblemática. As referências a seguir são a base de conhecimento que sustenta esta narrativa.
• Francener, A.; Almeida, R.F. Byrsonima in Flora e Funga do Brasil. Jardim Botânico do Rio de Janeiro. Disponível em: <https://florabrasil.jbrj.gov.br/FB30436>. Acesso em: 22 jul. 2025. (Fonte primária para dados taxonômicos, morfológicos e de distribuição oficial).
• Lorenzi, H., et al. 2006. Frutas Brasileiras e Exóticas Cultivadas (de consumo in natura). Instituto Plantarum, Nova Odessa, SP. (A mais importante e completa referência para os usos alimentícios, características e informações de cultivo do Murici).
• Almeida, S.P. de, et al. 1998. Cerrado: espécies vegetais úteis. Embrapa-CPAC, Planaltina, DF. (Referência chave para os usos tradicionais de plantas do Cerrado, incluindo o Murici).
• Ribeiro, J.F. & Walter, B.M.T. 2008. As principais fisionomias do bioma Cerrado. In: Sano, S.M., Almeida, S.P. & Ribeiro, J.F. (Eds.). Cerrado: ecologia e flora. Embrapa Cerrados, Planaltina, DF. pp. 151-212. (Contextualização da ecologia e das adaptações da flora do Cerrado).
• Oliveira, P.E. & Gibbs, P.E. 2000. Pollination biology of the cerrado: a review. In: The Cerrados of Brazil: ecology and natural history of a neotropical savanna. Columbia University Press, New York, pp. 329-347. (Referência sobre a polinização por abelhas coletoras de óleo no Cerrado).
• Jussieu, A. de. 1829. Monographie du genre *Byrsonima*. Annales des Sciences Naturelles, 18, 219. (Publicação original onde a espécie foi descrita).

















