Introdução & Nomenclatura do Guanandi
Nas margens dos rios, nas planícies inundáveis e nas restingas banhadas pela maresia, ergue-se uma árvore que é uma fortaleza contra a água. O Guanandi, de nome científico Calophyllum brasiliense, é uma lenda da flora brasileira, uma árvore cuja madeira incorruptível foi declarada “madeira de lei” pela Coroa Portuguesa, destinada à construção dos mastros e das quilhas das embarcações que desbravaram os oceanos. Mas sua força não reside apenas em sua madeira. Em suas sementes, ela guarda um óleo de um verde profundo, um tesouro da biofarmácia moderna, com poderes cicatrizantes e regeneradores tão potentes que a consagram como a “Árvore da Pele”. Seus múltiplos nomes, como o Tupi Jacareúba (“árvore do jacaré”) ou Landim, contam histórias de sua aparência e de sua profunda conexão com os ecossistemas aquáticos.
O nome científico, Calophyllum brasiliense Cambess., é uma ode à sua beleza foliar. O gênero, *Calophyllum*, vem do grego *kalos* (belo) e *phyllon* (folha), significando “de folha bela”. É uma descrição perfeita para suas folhas de um verde-escuro e brilhante, atravessadas por uma infinidade de nervuras finas e paralelas, que criam uma textura e um padrão de uma elegância singular. O epíteto específico, *brasiliense*, celebra sua vasta e importante presença em nosso território. Pertencente à família Calophyllaceae, ela é uma prima do Pau-santinho do Cerrado, compartilhando com ele uma química rica e complexa, que se manifesta em sua seiva amarelada e em seus poderes curativos.
O Guanandi é uma espécie nativa de uma imensa área das Américas, mas é no Brasil que ela demonstra sua mais espetacular adaptabilidade. É uma das poucas árvores a prosperar em quatro de nossos grandes biomas: Amazônia, Caatinga, Cerrado e Mata Atlântica. Sua presença, no entanto, é sempre um sinal de água, um marcador biológico das florestas ciliares, das várzeas, dos igapós e das restingas. É uma guardiã das águas. Ter uma semente de Guanandi em mãos é ter a promessa de cultivar uma árvore que é um monumento histórico, uma farmácia viva e um pilar insubstituível para a restauração de nossos ecossistemas mais vitais.
A jornada para compreender esta árvore é mergulhar em um universo de força e de cura. É entender como a mesma resistência que a protege da água do mar a torna uma madeira naval por excelência. É descobrir como os mesmos compostos que a defendem na natureza podem regenerar a nossa pele. É admirar uma folha tão perfeitamente desenhada que mereceu ser eternizada em seu nome científico. A *Calophyllum brasiliense* não é apenas uma árvore; é uma lição de como a beleza, a força e a cura podem fluir da mesma fonte, uma fonte profundamente enraizada nas terras e nas águas do Brasil.
Aparência: Como reconhecer o Guanandi?
Reconhecer um Guanandi é identificar uma árvore de porte majestoso, de uma beleza clássica e de folhas que são verdadeiras obras de arte da geometria natural. A Calophyllum brasiliense é uma árvore de grande porte, que pode atingir de 20 a 40 metros de altura, com um tronco reto, cilíndrico e robusto, que a eleva até o dossel da floresta. A copa é densa, de formato piramidal quando jovem, tornando-se mais arredondada e ampla com a idade, proporcionando uma sombra escura e fresca. A casca externa (ritidoma) é espessa, de cor escura e profundamente fissurada em um padrão de placas retangulares, uma textura que, para alguns, se assemelha à pele de um jacaré, daí o nome Jacareúba.
Ao se fazer um corte na casca, a árvore exuda um látex ou resina de cor amarela ou creme, espesso e pegajoso. Esta é a seiva elaborada da planta, rica em compostos químicos que a protegem e que são a fonte de parte de suas propriedades medicinais. É a “sangue amarelo” da árvore, uma assinatura de sua família botânica.
As folhas são a sua característica mais bela e a origem de seu nome. Elas são simples, de filotaxia oposta, e de uma textura coriácea e brilhante. O que as torna espetaculares é a sua nervação. A lâmina foliar é atravessada por uma infinidade de nervuras secundárias, muito finas, retas, paralelas entre si e dispostas de forma perpendicular à nervura central. São de 7 a 18 nervuras por centímetro, criando um padrão de linhas finas e perfeitas, como as de um papel de carta antigo ou de uma gravura delicada. Esta “folha bela” (*Calophyllum*) é a forma mais segura de identificar a árvore.
As flores são pequenas, brancas e muito perfumadas. Elas se agrupam em inflorescências (racemos ou panículas) que nascem nas axilas das folhas. Cada flor é composta por 4 a 10 tépalas (segmentos florais não diferenciados em pétalas e sépalas) e um grande e vistoso globo central formado por numerosos estames (de 50 a 135) de anteras amarelas. A floração, embora de flores pequenas, é abundante e transforma a copa em uma nuvem branca e perfumada, um evento de grande importância para os polinizadores.
O fruto é uma drupa globosa, com 1 a 3 cm de diâmetro. Ao amadurecer, sua casca fina passa do verde para o amarelo ou castanho. A polpa é fina e carnosa, envolvendo a semente.
A semente é grande, globosa e protegida por um caroço (endocarpo) duro. É desta semente que se extrai o precioso óleo de Guanandi, o tesouro oleoso que guarda os maiores segredos curativos da árvore.
Ecologia, Habitat & Sucessão do Guanandi
A ecologia da Calophyllum brasiliense é uma história de amor com a água. Esta árvore é uma especialista em ambientes úmidos, uma espécie que prospera onde muitas outras não sobreviveriam. Seu habitat preferencial são as florestas ripárias e inundáveis dos biomas Amazônia, Cerrado, Mata Atlântica e Caatinga. Ela é uma das espécies mais dominantes e importantes das Florestas de Várzea e Igapó na Amazônia, das Matas Ciliares que protegem os rios do Cerrado e da Caatinga, e das Restingas e matas de baixada da Mata Atlântica. Sua presença é um sinal inequívoco de um lençol freático alto ou de inundações periódicas, uma verdadeira guardiã dos nossos ecossistemas aquáticos.
Na dinâmica de sucessão ecológica, o Guanandi é uma espécie de estágios avançados, classificada como secundária tardia ou clímax. É uma árvore de crescimento lento a moderado e de vida muito longa, que compõe o dossel das florestas maduras. Suas plântulas são tolerantes à sombra, capazes de germinar e crescer lentamente sob a copa de outras árvores, aguardando uma oportunidade para alcançar a luz. Sua capacidade de tolerar solos encharcados e com baixa oxigenação é uma de suas mais notáveis adaptações fisiológicas.
As interações com a fauna são ricas e diversas. A polinização de suas flores brancas e perfumadas é realizada por uma grande variedade de insetos, principalmente abelhas nativas de diferentes espécies, que são atraídas pela farta oferta de pólen e néctar. A dispersão de seus frutos é uma estratégia dupla, que combina a ação dos animais com a da água. A estratégia primária é a zoocoria. Os frutos carnosos são um alimento muito apreciado pela fauna. Os principais dispersores são os morcegos frugívoros (quiropterocoria), que são os grandes semeadores noturnos do Guanandi. Aves grandes, macacos e roedores também consomem os frutos e dispersam as sementes.
A segunda estratégia é a hidrocoria, a dispersão pela água. Os frutos, ao caírem nos rios e igapós onde a árvore vive, são flutuantes e podem ser carregados pelas correntes por longas distâncias. Ao encalharem em uma nova margem, a semente encontra o ambiente úmido ideal para germinar. Esta dupla estratégia de dispersão é um dos segredos do sucesso e da ampla distribuição do Guanandi ao longo dos corredores fluviais de quase todo o Brasil.
Usos e Aplicações do Guanandi
O Guanandi é uma das árvores mais nobres e de usos mais diversificados da flora brasileira, uma fonte de madeira de lei, de óleo medicinal e de serviços ecossistêmicos de valor incalculável. As aplicações da Calophyllum brasiliense vão desde a construção de caravelas no século XVI até a formulação de cosméticos de alta tecnologia no século XXI.
Seu uso mais histórico e célebre é o de sua madeira. A madeira do Guanandi é moderadamente pesada, mas de uma resistência e durabilidade extraordinárias, especialmente em contato com a água salgada. É naturalmente resistente ao ataque de brocas marinhas e ao apodrecimento. Por estas razões, foi considerada uma “Madeira de Lei” desde o Brasil Colônia, sendo a matéria-prima por excelência para a construção naval. Mastros, quilhas, cavernames e conveses de navios e barcos eram feitos de Guanandi. Hoje, ainda é muito valorizada na construção civil para vigas, postes e assoalhos, e na marcenaria para a fabricação de móveis finos.
Seu uso mais moderno e promissor está no óleo extraído de suas sementes, conhecido como Óleo de Guanandi ou “Tamanu Brasileiro”. Este óleo, de cor esverdeada e rico em ácidos graxos e compostos como o ácido calofílico, é um dos mais potentes agentes cicatrizantes e regeneradores de pele da natureza. Possui propriedades anti-inflamatórias, analgésicas, antibacterianas e antioxidantes. É utilizado na indústria cosmética e farmacêutica para a formulação de cremes e pomadas para o tratamento de feridas, queimaduras, cicatrizes, acne, psoríase, herpes e outras afecções dermatológicas. É um produto não-madeireiro de altíssimo valor agregado, que promove a conservação da árvore em pé.
Na medicina tradicional, a casca, o látex e as folhas também são utilizados. O chá da casca é usado como adstringente e para o tratamento de reumatismo. O látex amarelo é aplicado topicamente sobre feridas e úlceras. O valor ecológico da espécie é imenso. Por ser uma das poucas árvores de grande porte adaptadas a ambientes inundáveis, ela é uma espécie-chave e insubstituível para a restauração de matas ciliares, várzeas e restingas degradadas.
Cultivo & Propagação do Guanandi
Cultivar um Guanandi é um ato de restauração de nossas águas e um investimento em um futuro de múltiplos produtos, da madeira nobre ao óleo que cura. A propagação da Calophyllum brasiliense é um processo que reflete sua natureza de árvore de floresta úmida, exigindo cuidados com a umidade e a qualidade de suas sementes.
A propagação é feita por sementes, que devem ser extraídas dos frutos maduros. A polpa fina deve ser removida. As sementes do Guanandi são recalcitrantes, ou seja, possuem alta umidade e perdem rapidamente o poder de germinar se forem secas ou armazenadas. O segredo do sucesso é plantar as sementes frescas, logo após a colheita.
O caroço lenhoso que envolve a semente é duro, mas geralmente não impõe uma dormência profunda, embora uma leve escarificação mecânica possa ajudar. A semeadura deve ser feita em um substrato rico em matéria orgânica e que retenha bem a umidade, em sacos de mudas de grande volume. A germinação é lenta e irregular, podendo levar de 2 a 5 meses. As mudas de Guanandi se desenvolvem melhor em um ambiente de meia-sombra nos primeiros anos, imitando as condições do sub-bosque da floresta. Elas são muito sensíveis à falta de água nesta fase inicial.
O crescimento da árvore é lento a moderado, como é típico de uma espécie de clímax. A primeira floração e frutificação podem levar mais de uma década. O plantio da Calophyllum brasiliense é ideal para a restauração de matas ciliares e áreas alagadas, para a composição de sistemas agroflorestais em áreas úmidas (focando na produção de óleo) e para o paisagismo como uma majestosa árvore ornamental, especialmente perto de lagos e cursos d’água. É uma árvore para quem planta com a visão no futuro, um legado de força, beleza e de saúde para a terra e para a pele.
Referências utilizadas para o Guanandi
Esta descrição detalhada da Calophyllum brasiliense foi construída com base em fontes científicas de alta credibilidade e na vasta documentação sobre seus usos históricos, medicinais e ecológicos. O objetivo foi criar um retrato completo que celebra a importância desta árvore guardiã das águas. As referências a seguir são a base de conhecimento que sustenta esta narrativa.
• Cabral, F.N. Calophyllum in Flora e Funga do Brasil. Jardim Botânico do Rio de Janeiro. Disponível em: <https://florabrasil.jbrj.gov.br/FB6827>. Acesso em: 25 jul. 2025. (Fonte primária para dados taxonômicos, morfológicos e de distribuição oficial).
• Lorenzi, H. 1992. Árvores Brasileiras: Manual de Identificação e Cultivo de Plantas Arbóreas Nativas do Brasil, Vol. 1. 1ª ed. Editora Plantarum, Nova Odessa, SP. (A mais importante fonte para informações práticas sobre cultivo, usos da madeira e características gerais).
• Pio Corrêa, M. 1984. Dicionário das Plantas Úteis do Brasil e das Exóticas Cultivadas. 6 vols. Ministério da Agricultura/IBDF, Rio de Janeiro. (Obra clássica de referência para os usos e nomes populares).
• Dweck, A.C. & Meadows, T. 2002. Tamanu (*Calophyllum inophyllum*) – the African, Asian, Polynesian and Pacific Panacea. International Journal of Cosmetic Science, 24(6), 341-348. (Contextualiza as propriedades do óleo do gênero *Calophyllum*).
• Rodrigues, R.R., Brancalion, P.H.S. & Isernhagen, I. (Orgs.). 2009. Pacto pela Restauração da Mata Atlântica: Referencial dos Conceitos e Ações de Restauração Florestal. LERF/ESALQ, Instituto BioAtlântica. (Contextualiza a importância de espécies como o Guanandi para a restauração de matas ciliares).
• Cambessèdes, J. 1828. In: Saint-Hilaire, A. de, Flora Brasiliae Meridionalis, vol. 1, p. 320. (Publicação original onde a espécie foi descrita pela primeira vez).
















