Introdução & Nomenclatura do Capim-de-burro
Na vasta biblioteca da natureza, os nomes são as chaves que abrem as portas para a compreensão. E poucas plantas nos oferecem uma chave tão intrigante e paradoxal quanto a Paspalum eucomum. Seu nome científico é uma ode à sua beleza mais íntima: *eucomum*, do grego *eu* (belo, bom) e *kome* (cabelo), significa “de belos cabelos”, um tributo dos botânicos aos pelos finos e sedosos que adornam suas sementes como um manto de seda. No entanto, um de seus nomes populares, Capim-de-burro, sugere uma natureza rústica, comum, uma forragem de pouca nobreza. Este paradoxo não é uma contradição, mas sim um retrato completo de sua identidade: uma planta de uma beleza delicada e de uma força tão resiliente e onipresente que se tornou parte fundamental e cotidiana da paisagem do Cerrado. É a prova de que a beleza mais refinada pode se manifestar na mais robusta das sobreviventes.
Esta gramínea é uma parente muito próxima do Capim-estrela ou Orelha-de-coelho (*Paspalum stellatum*), com quem compartilha a aparência geral de suas inflorescências felpudas. São como duas irmãs que enfeitam os campos do Cerrado, distinguíveis apenas pelos detalhes de suas tranças. A ciência, em sua busca pela precisão, as separa por características como a largura da raque de sua inflorescência, mas para o olhar do poeta da natureza, ambas são expressões da beleza que o sol arranca da terra vermelha. O gênero, *Paspalum*, é um dos maiores e mais importantes das Américas, um verdadeiro pilar dos ecossistemas de campo.
O Capim-de-burro é uma joia nativa e endêmica do Brasil, uma espécie que é a própria alma do bioma Cerrado. Sua ocorrência se concentra no coração do país, nos campos e savanas do Planalto Central, nos estados de Goiás, Mato Grosso, Minas Gerais, São Paulo, Paraná e no Distrito Federal. É uma especialista em solos pobres e em um regime de fogo e de sol, uma das gramíneas que definem a paisagem e a resiliência deste bioma. Ter uma semente de *Paspalum eucomum* em mãos é ter a promessa de cultivar uma planta que nos ensina sobre a beleza oculta, sobre a força da humildade e sobre o valor inestimável dos seres que formam a base da vida em nossos campos.
Sua longa história de estudo, com sinônimos como *Paspalum splendens*, reflete a admiração que sempre causou aos naturalistas. Cada nome é uma tentativa de capturar seu esplendor. A jornada para apreciar esta gramínea é um exercício de proximidade. É preciso se afastar da visão ampla da savana e se ajoelhar, observar contra a luz e descobrir o universo de detalhes que se esconde em cada uma de suas espiguetas: os pelos que brilham, as nervuras que se desenham e as pequenas máculas púrpuras que a salpicam como sardas. É neste microcosmo que o Capim-de-burro revela que seu nome científico, “belamente-peludo”, não é um exagero, mas uma descrição justa de uma beleza que se revela apenas aos olhos mais atentos e pacientes.
Aparência: Como reconhecer o Capim-de-burro?
Reconhecer o Capim-de-burro é identificar uma gramínea de porte robusto e de uma inflorescência de uma beleza que é, ao mesmo tempo, felpuda e salpicada de cor. A Paspalum eucomum é uma erva perene que cresce em touceiras densas e vigorosas (cespitosa), com colmos eretos que podem atingir de 50 cm a 1,5 metro de altura. Sua perenidade e sua capacidade de dominar a paisagem vêm de seu rizoma paquimorfo, um caule subterrâneo curto, grosso e lenhoso, que a ancora firmemente ao solo e que funciona como um cofre de energia, garantindo sua sobrevivência e sua rebrota explosiva após a passagem do fogo ou da seca.
As folhas são longas e finas, com lâminas que podem ser planas ou enroladas, formando a base densa da touceira. São folhas de uma textura firme, projetadas para resistir às intempéries do Cerrado. É a partir desta base de folhas que se erguem as hastes florais, que levarão ao céu a sua assinatura mais bela e distintiva.
A inflorescência é o grande espetáculo da Paspalum eucomum. No topo de uma longa haste, surgem, na maioria das vezes, dois racemos (cachos de flores) terminais e subconjugados, que se dispõem em um “V” aberto. Cada racemo é denso, alongado e coberto por centenas de pequenas espiguetas. O que a torna tão especial, e o que lhe rendeu o nome de “belamente-peluda”, é o indumento que veste estas espiguetas. A gluma superior e o lema inferior são densamente cobertos por pelos (tricomas) longos, finos, brancos e sedosos, que se projetam para fora e conferem ao racemo uma aparência felpuda e prateada, muito semelhante à de sua prima, a Orelha-de-coelho.
No entanto, a *Paspalum eucomum* guarda um detalhe de beleza que a torna única. As brácteas que envolvem a semente, as glumas, são frequentemente maculadas, ou seja, salpicadas por pequenas manchas de cor púrpura ou castanha. Este detalhe, visível apenas a um olhar atento, adiciona uma camada de complexidade e de cor à sua aparência, como se a seda branca de sua inflorescência tivesse sido salpicada por gotas de vinho. É este conjunto – a forma em “V”, a textura de seda e as máculas púrpuras – que a distingue no vasto universo dos capins do Cerrado.
As flores, como em todas as gramíneas, são minúsculas e polinizadas pelo vento. O fruto é uma cariopse (um grão), que permanece protegido dentro da espigueta. A unidade de dispersão é a própria espigueta, com sua vestimenta de pelos e suas manchas secretas, uma pequena joia de engenharia biológica pronta para viajar e dar início a uma nova touceira, um novo ponto de beleza e de força na savana.
Ecologia, Habitat & Sucessão do Capim-de-burro
A ecologia da Paspalum eucomum é a de um ser fundamental, um dos principais arquitetos e sustentáculos dos ecossistemas de campo do Brasil. Ela é uma espécie emblemática e endêmica do bioma Cerrado, onde é uma das gramíneas mais características e abundantes, prosperando nas fisionomias de Campo Limpo, Campo Rupestre e Cerrado lato sensu. É uma planta de pleno sol, perfeitamente adaptada aos solos profundos, ácidos, bem drenados e pobres em nutrientes que definem o Planalto Central brasileiro.
Sua relação com o fogo é uma aliança de dominação e de renovação. O Capim-de-burro é uma pirófita que não apenas sobrevive, mas se beneficia do fogo. Seu rizoma subterrâneo a protege do calor, e a passagem das chamas, ao eliminar a competição e depositar nutrientes no solo, estimula uma rebrota intensa e sincronizada. Esta capacidade de se regenerar rapidamente após o fogo é o que garante sua permanência e sua dominância na paisagem, fazendo dela um dos principais combustíveis e, ao mesmo tempo, uma das principais regeneradoras do ciclo de fogo do Cerrado.
Na dinâmica de sucessão, a Paspalum eucomum é um membro permanente e essencial da comunidade clímax dos ecossistemas campestres e savânicos. Ela não é uma etapa de transição, mas sim a própria matriz, a estrutura fundamental sobre a qual a biodiversidade de arbustos e de outras ervas se estabelece. Sua presença massiva ajuda a proteger o solo contra a erosão, a promover a infiltração de água e a criar o habitat para uma infinidade de outras espécies de plantas e de animais.
Sua biologia reprodutiva é uma lição de eficiência. A polinização é realizada pelo vento (anemofilia). A dispersão de suas sementes é uma estratégia mista e oportunista. As espiguetas, com seus pelos sedosos, são leves e facilmente carregadas pelo vento (anemocoria). Estes mesmos pelos, no entanto, são perfeitos para se prenderem ao pelo de mamíferos e às penas de aves que atravessam os campos (epizoocoria), que se tornam seus dispersores de longa distância. Esta capacidade de usar múltiplos vetores é um dos segredos de seu sucesso e de sua ampla distribuição pelos cerrados do Brasil.
Usos e Aplicações do Capim-de-burro
O Capim-de-burro, apesar de seu nome popular pouco lisonjeiro, é uma planta de uma utilidade imensa, cujas aplicações são a base para a sustentabilidade da pecuária, para a conservação do solo e para a manutenção da biodiversidade dos nossos campos.
Seu uso mais importante é como planta forrageira. A Paspalum eucomum é uma gramínea nativa de bom valor forrageiro, sendo um componente fundamental das pastagens nativas do Cerrado. É bem aceita pelo gado e pela fauna nativa, como os veados-campeiros. Sua principal virtude como forrageira é a sua extrema rusticidade: ela resiste ao pisoteio, à seca e ao fogo, garantindo a disponibilidade de alimento para os rebanhos mesmo nas condições mais adversas. É um pilar para uma pecuária mais sustentável, que busca se integrar à paisagem nativa em vez de substituí-la.
O seu valor ecológico como protetora do solo é inestimável. As touceiras densas e o sistema radicular fasciculado e profundo do Capim-de-burro formam uma malha que segura o solo, sendo de uma eficiência extraordinária para o controle da erosão. O seu plantio em áreas de solo exposto e em taludes é uma das estratégias de bioengenharia mais eficazes para estabilizar a paisagem e evitar a perda de solo. É uma espécie-chave para a restauração de ecossistemas campestres degradados.
Seu potencial ornamental é muito alto, embora ainda pouco explorado. A beleza de suas inflorescências prateadas e maculadas, as “belamente-peludas”, a torna uma excelente escolha para o paisagismo naturalista. É perfeita para a composição de jardins de gramíneas e para a criação de “prados” ou “campos” de inspiração no Cerrado, que demandam pouca água e cuidados. Suas inflorescências secas também podem ser utilizadas em arranjos florais, adicionando textura e beleza duradoura.
Cultivo & Propagação do Capim-de-burro
Cultivar o Capim-de-burro é um processo simples e de grande impacto, ideal para projetos de restauração em larga escala, para a formação de pastagens resilientes ou para a criação de jardins que mimetizam a beleza funcional dos nossos campos. A propagação da Paspalum eucomum reflete sua natureza vigorosa e sua incrível capacidade de se estabelecer e prosperar.
A propagação pode ser feita tanto por sementes quanto pela divisão de touceiras. A coleta das sementes deve ser feita quando as inflorescências estão secas e as espiguetas se desprendem com facilidade. As sementes geralmente não apresentam dormência e germinam com facilidade. A semeadura pode ser feita diretamente no campo, a lanço, ou em sementeiras para a produção de mudas. A semeadura deve ser superficial, pois as sementes de gramíneas frequentemente necessitam de luz para germinar.
A divisão de touceiras é um método de propagação vegetativa muito eficiente, especialmente para o uso ornamental ou para o estabelecimento rápido de uma cobertura em pequenas áreas. As touceiras podem ser desenterradas, divididas em seções menores com raízes e parte aérea, e replantadas diretamente no local desejado.
A Paspalum eucomum é uma planta que exige pleno sol para prosperar. O crescimento é rápido, e a planta forma touceiras densas em uma única estação de crescimento. Uma vez estabelecida, ela é extremamente resistente à seca, ao calor e ao fogo, exigindo pouquíssima ou nenhuma manutenção. É a planta ideal para condições desafiadoras e para um jardim de baixa manutenção.
O plantio do Capim-de-burro é ideal para a recuperação de pastagens degradadas, para o controle de erosão em grandes áreas e para a criação de prados e jardins de inspiração campestre. É uma planta fundamental, que nos reconecta com a beleza funcional e a resiliência das paisagens abertas do Brasil, uma verdadeira lição de como a força pode residir na simplicidade e na adaptabilidade.
Referências utilizadas para o Capim-de-burro
Esta descrição detalhada da Paspalum eucomum foi construída com base em fontes científicas de alta credibilidade, incluindo a taxonomia oficial da flora brasileira e manuais de referência sobre gramíneas nativas e a flora do Cerrado. O objetivo foi criar um retrato completo que celebra a importância fundamental e a beleza oculta desta gramínea tão onipresente e essencial. As referências a seguir são a base de conhecimento que sustenta esta narrativa.
• Oliveira, R.C. de; Valls, J.F.M. Paspalum in Flora e Funga do Brasil. Jardim Botânico do Rio de Janeiro. Disponível em: <https://florabrasil.jbrj.gov.br/FB13461>. Acesso em: 26 jul. 2025. (Fonte primária para dados taxonômicos, morfológicos e de distribuição oficial).
• Gouvêia, A.P.M.L., Valls, J.F.M. & Oliveira R.C. 2020. *Paspalum* (Poaceae) das formações savânicas e campestres do Parque Ecológico Bernardo Sayão, Distrito Federal, Brasil. Rodriguésia, 71, e04572018. (Estudo recente que compara a espécie com *P. stellatum*).
• Filgueiras, T.S. & Rodrigues, R.S. 2015. *Axonopus* in Lista de Espécies da Flora do Brasil. Jardim Botânico do Rio de Janeiro. (Contextualiza o trabalho dos botânicos na família Poaceae).
• Klink, C.A. & Machado, R.B. 2005. A conservação do Cerrado brasileiro. Megadiversidade, 1(1), 147-155. (Contexto sobre a importância das gramíneas na ecologia e restauração do Cerrado).
• Denham, S.S., Zuloaga, F.O. & Morrone, O. 2002. Systematic revision and phylogeny of *Paspalum* subgenus Ceresia (Poaceae: Panicoideae: Paniceae). Annals of the Missouri Botanical Garden, 89, 337-399. (Revisão importante do subgênero ao qual a espécie pertence).
• Trinius, C.B. von. 1826. De Graminibus paniceis, p. 115. (Publicação onde o basiônimo da espécie foi descrito).













