Introdução & Nomenclatura da Calea harleyi
Nas serras mais altas do Brasil, onde o quartzo brilha sob o sol e a vida floresce sobre rochas milenares, existe um universo de plantas de uma força e beleza singulares. É neste cenário, nos Campos Rupestres da Bahia e de Minas Gerais, que encontramos a Calea harleyi. Longe da grandiosidade das árvores da floresta, esta espécie se apresenta como um arbusto humilde, mas sua história é um épico de resistência. Nomes populares como “Picão-do-mato” ou “Erva-amarga” são frequentemente atribuídos a ela e suas parentes, rótulos genéricos para um ser de identidade tão específica e nobre. Talvez fosse mais justo chamá-la de “Calea-de-Harley” ou “Arnica-rupestre”, nomes que evocariam sua linhagem e seu habitat rochoso.
O nome científico, Calea harleyi H.Rob., conta uma história de descoberta e homenagem. O gênero, Calea, tem uma origem incerta, possivelmente vinda do grego *kalos*, que significa “belo”, uma ode à beleza delicada de suas inflorescências. O epíteto específico, harleyi, é um tributo ao botânico inglês Raymond M. Harley, um dos mais importantes exploradores da flora da Cadeia do Espinhaço e da Chapada Diamantina, que coletou o espécime-tipo desta planta em 1974. Cada vez que pronunciamos seu nome, honramos a planta e o naturalista que a revelou para a ciência.
A Calea harleyi é um tesouro exclusivamente nosso. É uma espécie nativa e endêmica do Brasil, uma linhagem que evoluiu e se especializou nas condições únicas de nossos planaltos. Sua casa são os Campos Rupestres, ecossistemas de altitude que se inserem nos domínios do Cerrado e da Caatinga, principalmente na Cadeia do Espinhaço em Minas Gerais e na Chapada Diamantina na Bahia. Ela não é uma planta de solo fértil e água abundante; é uma especialista em sobreviver e prosperar onde poucas outras conseguem. Ter uma semente de Calea harleyi é segurar a promessa de uma vida forjada na adversidade, um símbolo da incrível capacidade de adaptação da flora brasileira.
Aparência: Como reconhecer a Calea harleyi?
Reconhecer a Calea harleyi é um exercício de observação atenta aos detalhes que revelam sua força. Ela é um subarbusto que cresce de forma ascendente e em touceiras (cespitoso), atingindo de 35 a 60 cm de altura. Sua forma de vida é a primeira pista de sua resiliência. Sob a terra, esconde seu maior tesouro: um xilopódio, uma raiz tuberosa e lenhosa que funciona como um cofre de reservas de água e nutrientes. É este órgão que garante sua sobrevivência a longos períodos de seca e que permite sua rebrota vigorosa após a passagem do fogo, um evento comum em seu habitat.
Seus ramos são finos, subcilíndricos e estriados, com uma textura áspera ao toque. As folhas são opostas, presas por pecíolos curtos, e de um formato estreitamente elíptico. A margem é serreada, e a textura é cartácea, firme como papel. Ambas as faces da folha são esparsamente ásperas (escábridas), e a face inferior é marcada por pequenos pontos glandulares, que contêm os óleos essenciais responsáveis pelo aroma e pelo sabor amargo característico de muitas espécies do gênero Calea.
A inflorescência da Calea harleyi é a sua expressão mais exuberante. As flores, na verdade, são capítulos – pequenas estruturas que agrupam muitas flores diminutas, uma característica da grande família Asteraceae. Os capítulos são do tipo discoide, o que significa que são compostos apenas por flores tubulares, amarelas e hermafroditas, sem as flores com “pétalas” (lígulas) na borda. Estes capítulos, por sua vez, se agrupam em uma inflorescência maior, de aspecto umbeliforme, que se ergue acima da folhagem. Cada capítulo é envolto por um invólucro cilíndrico, formado por várias séries de brácteas (pequenas folhas modificadas) que protegem as flores.
O fruto da Calea harleyi é uma cipsela, um tipo de fruto seco que contém uma única semente. É prismático, com 4 ângulos, e possui pelos finos e rígidos sobre as nervuras. No ápice de cada fruto, há uma estrutura crucial para a dispersão: o pápus. Diferente do pápus plumoso de um dente-de-leão, o da Calea harleyi é paleáceo, formado por 12 a 13 pequenas páleas (escamas) livres e de formato obovado. Esta pequena coroa de escamas é a “asa” que ajudará a semente a viajar e encontrar um novo lugar para germinar nas paisagens rochosas que ela chama de lar.
Ecologia, Habitat & Sucessão da Calea harleyi
A ecologia da Calea harleyi é um épico de especialização e sobrevivência nos “jardins de pedra” do Brasil. Seu habitat, o Campo Rupestre, é um dos ambientes mais desafiadores e fascinantes do planeta. Localizado em altitudes que geralmente superam os 900 metros, sobre solos extremamente rasos, arenosos ou pedregosos, derivados de quartzo ou minério de ferro (canga), este ecossistema impõe condições extremas: alta radiação solar, grandes variações de temperatura entre o dia e a noite, solos ácidos e pobres em nutrientes, e uma estação seca prolongada. A flora que ali prospera é um exército de especialistas, e a *Calea harleyi* é um de seus mais bravos soldados.
Na dinâmica de sucessão, a Calea harleyi não se encaixa nos modelos clássicos de floresta. Ela é uma espécie pioneira e permanente de seu próprio ambiente. Ela não prepara o caminho para árvores maiores, pois seu ecossistema não é uma etapa de transição para uma floresta. Ela é, em si, parte da comunidade clímax de um ambiente naturalmente aberto e arbustivo. Suas adaptações são a chave de seu domínio. O xilopódio lhe permite sobreviver ao fogo, que atua como um agente de renovação nestes campos. Suas folhas ásperas e glândulas aromáticas a protegem da herbivoria. Seu porte baixo e em touceira a torna resistente aos ventos fortes das altitudes.
As interações com a fauna são vitais para sua comunidade. Suas flores amarelas, agrupadas em capítulos, funcionam como plataformas de pouso e alimentação para uma grande diversidade de insetos polinizadores generalistas. Abelhas nativas, vespas, moscas e borboletas são visitantes frequentes, que encontram no néctar e no pólen da Calea harleyi uma fonte de alimento segura em um ambiente onde os recursos podem ser escassos. Ela é um pequeno, mas importante, restaurante para os polinizadores do Campo Rupestre.
A dispersão de suas sementes é uma estratégia mista. O pápus paleáceo sugere anemocoria, a dispersão pelo vento. Embora as pequenas escamas não permitam voos planados de longa distância como as plumas de outras Asteraceae, elas são suficientes para que o vento arraste as sementes pelo chão rochoso e as deposite em fendas e pequenas manchas de solo onde possam germinar. É possível também que as sementes, com suas pequenas cerdas e escamas, se prendam ao pelo de pequenos mamíferos que transitam pela vegetação, em um processo de epizoocoria, pegando carona para novos territórios.
Usos e Aplicações da Calea harleyi
As aplicações da Calea harleyi residem em seu imenso potencial ecológico, ornamental e, muito provavelmente, medicinal. Como uma espécie ainda pouco conhecida fora dos círculos acadêmicos, seus usos são um campo fértil para a descoberta, a valorização da biodiversidade e o desenvolvimento de novas cadeias produtivas baseadas na flora nativa do Cerrado e da Caatinga.
O seu valor medicinal é uma forte possibilidade, baseada na rica farmacopeia de seu gênero. O gênero Calea é famoso na medicina popular brasileira, onde muitas de suas espécies são conhecidas como “Erva-amarga”, “Arnica-do-campo” ou “Catinga-de-mulata”. A espécie mais famosa, a Calea zacatechichi do México, é conhecida como “Erva dos Sonhos”. No Brasil, espécies de Calea são amplamente utilizadas como tônicos amargos para tratar problemas digestivos e hepáticos, e como anti-inflamatórios e febrífugos. É altamente provável que a Calea harleyi, com suas glândulas e sabor amargo, contenha compostos bioativos com propriedades semelhantes. Pesquisas etnobotânicas e fitoquímicas podem revelar um grande potencial, mas é fundamental que seu uso seja validado pela ciência e que a automedicação seja evitada.
O seu uso ecológico é imediato e inestimável. Como uma espécie endêmica e altamente adaptada aos Campos Rupestres, ela é uma peça insubstituível para a restauração de áreas degradadas neste ecossistema único e frágil, como áreas afetadas por mineração ou turismo desordenado. Seu plantio ajuda a restabelecer a cobertura vegetal original, a estabilizar solos rasos e a fornecer recursos para a fauna de polinizadores nativos. Preservar suas sementes é preservar a capacidade de regeneração de um dos ecossistemas mais biodiversos do mundo.
Seu potencial ornamental é extraordinário para um nicho de jardinagem cada vez mais em voga: o paisagismo com plantas nativas e o xeriscaping (jardinagem de baixo consumo de água). A Calea harleyi é a candidata perfeita para jardins de pedra, canteiros de inspiração rupestre e para qualquer projeto que busque recriar a beleza selvagem e resiliente do Cerrado de altitude. Seu porte compacto, sua folhagem de textura interessante e suas flores amarelas que surgem em profusão a tornam uma planta de grande apelo estético, com a vantagem adicional de ser extremamente rústica e de baixa manutenção.
Cultivo & Propagação da Calea harleyi
Cultivar a Calea harleyi é um convite a recriar em pequena escala as condições de um dos mais fascinantes ecossistemas brasileiros. É um desafio para jardineiros e viveiristas que desejam ir além do comum e se dedicar à propagação de espécies especialistas. O sucesso no cultivo desta planta reside em compreender e respeitar sua origem rochosa e ensolarada.
A propagação se inicia com as sementes, contidas nas pequenas cipselas. A coleta deve ser feita quando os capítulos estão secos e o pápus já está visível e começando a se soltar. As sementes podem ser separadas manualmente das inflorescências. As sementes de plantas de ambientes extremos como o Campo Rupestre podem apresentar mecanismos de dormência complexos, que respondem a sinais ambientais específicos como variações de luz e temperatura.
Para a germinação da Calea harleyi, a chave é o substrato. Esqueça a terra preta e rica. O substrato deve ser o mais mineral e drenante possível, imitando seu solo nativo. Uma mistura de areia grossa, pedrisco de quartzo e uma pequena quantidade de matéria orgânica é o ideal. As sementes devem ser semeadas na superfície, talvez pressionadas levemente contra o substrato, pois muitas espécies de campos de altitude precisam de luz para germinar. A irrigação deve ser feita com um borrifador fino para não deslocar as sementes, e o recipiente deve ser mantido em local de sol pleno.
O crescimento da Calea harleyi será, muito provavelmente, lento. Estas plantas investem uma quantidade enorme de energia na construção de seu sistema subterrâneo, o xilopódio, antes de se expandirem vigorosamente na parte aérea. A paciência é fundamental. As mudas serão extremamente sensíveis ao excesso de umidade, que pode causar o apodrecimento das raízes. As regas devem ser esparsas, permitindo que o substrato seque completamente entre elas.
O plantio definitivo da Calea harleyi é estritamente para locais que recriem seu habitat. Ela não sobreviverá em canteiros de jardim convencionais, úmidos e sombreados. Seu lugar é em jardins de pedra, frestas de muros, vasos com alta drenagem e em projetos de restauração de campos rupestres. Ao dominar seu cultivo, estamos dando um passo importante para a conservação ex-situ e para a popularização de uma joia da nossa flora.
Referências utilizadas para a Calea harleyi
Esta descrição aprofundada da Calea harleyi foi tecida a partir das informações taxonômicas oficiais e de um mergulho no conhecimento acumulado sobre a ecologia dos Campos Rupestres e a etnobotânica do gênero Calea. O objetivo foi iluminar uma espécie pouco conhecida, revelando sua beleza, resiliência e potencial. As referências a seguir são a base de conhecimento que sustenta esta narrativa.
• Reis-Silva, G. A., et al. Calea in Flora e Funga do Brasil. Jardim Botânico do Rio de Janeiro. Disponível em: <https://floradobrasil.jbrj.gov.br/FB116484>. Acesso em: 21 jul. 2025. (Fonte primária para dados taxonômicos, morfológicos e de distribuição oficial).
• Roque, N. & Carvalho, V.C. 2011. Estudos taxonômicos do gênero Calea (Asteraceae, Neurolaeneae) no estado da Bahia, Brasil. Rodriguésia, 62(3), 547-561. (Estudo aprofundado sobre o gênero no principal estado de ocorrência da espécie).
• Reis-Silva, G. R. 2019. O gênero Calea L. (Neurolaeneae, Asteraceae) em Minas Gerais, Brasil. Tese (Doutorado) – Universidade Federal de Viçosa, Viçosa, MG. (Estudo aprofundado sobre o gênero no outro estado de ocorrência da espécie).
• Giulietti, A.M., Menezes, N.L. de, Pirani, J.R., Meguro, M., & Wanderley, M.G.L. 1987. Flora da Serra do Cipó, Minas Gerais: caracterização e lista das espécies. Boletim de Botânica da Universidade de São Paulo, 9, 1-151. (Exemplo de estudo clássico sobre a flora dos Campos Rupestres).
• Harley, R.M. & Simmons, N.A. 1986. Florula of Mucugê, Chapada Diamantina – Bahia. Royal Botanic Gardens, Kew. (Referência sobre a flora da região onde a espécie foi descoberta).
• Pruski, J.F. 1997. Calea. In: Steyermark, J.A. et al. (eds.). Flora of the Venezuelan Guayana. Vol. 3. Missouri Botanical Garden Press, St. Louis. pp. 243-270. (Contextualização do gênero em escala neotropical).














