Introdução & Nomenclatura do Tingui
Nas vastas extensões do Cerrado e das matas secas do Brasil, ergue-se uma árvore cuja identidade está intrinsecamente ligada a uma das mais engenhosas artes da sobrevivência: a pesca. O Tingui, ou Timbó-do-cerrado, cientificamente conhecido como Magonia pubescens, é o portador de um conhecimento ancestral. Seus nomes, derivados do Tupi, são sinônimos de uma prática fascinante: o uso de plantas para atordoar peixes. “Tingui” e “Timbó” são palavras que designam o poder de substâncias que, dispersas na água, facilitam a captura, revelando uma profunda compreensão da química da natureza pelos primeiros habitantes de nossas terras.
O nome científico, Magonia pubescens A.St.-Hil., também guarda suas histórias. O gênero, *Magonia*, foi nomeado em homenagem a uma figura da história da botânica. O epíteto específico, *pubescens*, vem do latim e significa “coberto de pelos finos”, uma referência à delicada pubescência que reveste suas folhas, ramos jovens e inflorescências. Seus sinônimos, como *Magonia glabrata*, mostram a variabilidade da espécie, que pode apresentar formas com mais ou menos pelos, mas que compartilham da mesma essência poderosa. Pertencente à família Sapindaceae, a mesma do guaraná e do sabão-de-soldado, ela compartilha com seus parentes a produção de saponinas, os compostos químicos por trás de seus poderes.
O Tingui é uma árvore de alma brasileira, com uma ampla distribuição pelos nossos biomas mais ensolarados. Nativo do Brasil e de países vizinhos, ele é um pilar dos ecossistemas da Amazônia (em suas savanas e florestas secas), da Caatinga e, principalmente, do Cerrado. Sua presença se estende do Norte ao Sudeste do país, sempre como um símbolo de resiliência e de uma sabedoria que flui como os rios. Ter uma semente de Tingui é segurar a promessa de uma árvore que é um elo com o passado, uma lição de etnobotânica e um testemunho da profunda interdependência entre as plantas, os animais e o homem.
Aparência: Como reconhecer o Tingui?
Reconhecer um Tingui é identificar uma árvore esculpida pelo sol e pelo fogo, um verdadeiro ícone do Cerrado. A Magonia pubescens é uma árvore de porte médio a grande, que pode atingir de 6 a 20 metros de altura. Seu tronco é robusto, muitas vezes tortuoso, e coberto por uma casca extremamente espessa, suberosa (corticosa) e profundamente fissurada. Esta casca é sua armadura, uma proteção magnífica contra os incêndios que frequentam seu habitat, permitindo que a árvore sobreviva e rebrote com vigor. A copa é geralmente ampla e arredondada, proporcionando uma sombra generosa.
As folhas são grandes, compostas e paripenadas, formadas por 6 a 10 folíolos sésseis (sem pecíolo) dispostos em pares ao longo da raque. Os folíolos são de formato oblongo, de textura subcoriácea (semifirme como couro) e, como o nome *pubescens* sugere, são cobertos por uma fina camada de pelos, especialmente na face inferior, o que lhes confere uma textura aveludada e uma aparência opaca. As nervuras são proeminentes em ambas as faces, desenhando um padrão elegante na folha.
As flores do Magonia pubescens são de uma beleza intrigante. Elas se agrupam em grandes inflorescências do tipo tirso, que são cachos ramificados que surgem nos ramos. As flores individuais são relativamente grandes, com pétalas de cores contrastantes: a face interna (adaxial) é geralmente purpúrea ou arroxeada, enquanto a face externa (abaxial) é esverdeada e coberta por uma densa camada de pelos crespos. Esta combinação de cores e texturas cria um efeito visual único e sofisticado.
O fruto é a estrutura mais espetacular e inconfundível do Tingui. É uma grande cápsula lenhosa, inflada e de formato trialado, que pode atingir mais de 12 cm de diâmetro. Sua aparência é única, assemelhando-se a um grande balão de três asas ou a um chapéu de três pontas. Quando imaturo, o fruto é verde, tornando-se marrom e lenhoso com a maturação. Este fruto grande e leve é projetado para abrigar e, posteriormente, dispersar as sementes.
Dentro desta cápsula magnífica, encontram-se as sementes. Elas são grandes, achatadas e providas de uma asa larga que as circunda ou se projeta de um lado. A semente e a asa juntas podem atingir quase 10 cm de diâmetro. Esta asa membranosa é o passaporte da semente para sua jornada pelo ar, um testemunho de uma estratégia de dispersão que depende da altura e do vento.
Ecologia, Habitat & Sucessão do Tingui
A ecologia da Magonia pubescens é a de uma espécie dominante e resiliente, perfeitamente adaptada aos ambientes sazonais do Brasil. Seu lar principal é o Cerrado lato sensu, onde ela é uma das árvores mais características e facilmente reconhecíveis. Sua presença se estende às florestas estacionais semideciduais e aos enclaves de vegetação mais seca e aberta da Amazônia e da Caatinga. É uma árvore que prospera sob o sol pleno e em solos bem drenados, muitas vezes pobres em nutrientes.
A sua relação com o fogo é um dos pilares de seu sucesso ecológico. O Tingui é uma espécie pirófita por excelência. Sua casca espessa e corticosa é um dos isolantes térmicos mais eficientes do Cerrado, protegendo os tecidos vivos do tronco de danos fatais durante as queimadas. Esta armadura permite que a árvore não apenas sobreviva ao fogo, mas que seja favorecida por ele, pois o fogo elimina competidores menos resistentes e abre clareiras onde suas sementes podem germinar.
Na dinâmica de sucessão, a Magonia pubescens é considerada uma espécie de estágios intermediários a avançados, como secundária tardia ou clímax do Cerrado. Seu crescimento é lento, uma estratégia de investimento em estruturas de defesa (casca grossa) e em madeira de boa qualidade. Ela é um componente estrutural e permanente das paisagens de Cerrado mais maduras e preservadas.
As interações com a fauna são focadas na reprodução. A polinização de suas flores complexas é provavelmente realizada por abelhas e outros insetos de médio a grande porte, que são atraídos pelo néctar e são capazes de navegar por sua estrutura. A dispersão de suas sementes é uma parceria com o vento. O fruto, embora grande, é oco e relativamente leve, mas é a semente em si que viaja. Quando a cápsula se abre ou se decompõe, as grandes sementes aladas são liberadas. A asa membranosa permite que elas sejam carregadas pelas correntes de ar em um voo planado (anemocoria), uma estratégia eficaz para cruzar as vastas paisagens abertas do Cerrado.
Usos e Aplicações do Tingui
O Tingui é uma árvore que representa um capítulo fascinante da etnobotânica brasileira, sendo seus usos tradicionais muito mais notáveis do que suas aplicações industriais. O valor da Magonia pubescens reside no conhecimento ancestral sobre o poder químico de suas saponinas, um saber que transformou esta árvore em uma ferramenta de pesca revolucionária.
O uso mais importante e culturalmente rico é como ictiotóxico, ou veneno de peixe. Esta prática, conhecida como “tinguijada”, é realizada por diversas comunidades indígenas e ribeirinhas em todo o Brasil. A casca, as folhas ou os frutos do Tingui são macerados ou triturados e, em seguida, jogados em um trecho de rio de águas lentas, geralmente represado. A planta libera na água grandes quantidades de saponinas, compostos que têm um efeito semelhante ao do sabão. Essas saponinas afetam as brânquias dos peixes, dificultando sua capacidade de respirar. Atordoados e com falta de oxigênio, os peixes sobem à superfície, onde podem ser facilmente coletados à mão. É crucial entender que este método, quando praticado de forma tradicional e em pequena escala, é sustentável, não contamina a água permanentemente e não torna a carne dos peixes imprópria para o consumo.
As mesmas saponinas que dão ao Tingui seu poder de pesca também lhe conferem outras utilidades. A casca, quando agitada em água, produz uma espuma abundante e pode ser usada como um sabão natural para lavar roupas ou o corpo, o que lhe rende o nome de “Sabão-de-soldado” em algumas regiões. Na medicina popular, o chá de sua casca é utilizado para tratar problemas de pele, úlceras e feridas, aproveitando suas propriedades anti-inflamatórias e antissépticas.
A madeira da Magonia pubescens é de qualidade moderada, sendo leve e não muito resistente ao apodrecimento. É utilizada localmente para construção de interiores, caixotaria, brinquedos e como uma excelente lenha. Seu fruto grande e oco também é utilizado no artesanato para a confecção de objetos decorativos.
O valor ecológico do Tingui é imenso, especialmente para a recuperação de áreas degradadas no Cerrado. Sua rusticidade, resistência ao fogo e crescimento em solos pobres fazem dela uma espécie valiosa para projetos de restauração, ajudando a restabelecer a cobertura vegetal e a complexidade do ecossistema.
Cultivo & Propagação do Tingui
Cultivar um Tingui é trazer para perto uma árvore de história rica e de uma beleza singular, especialmente em seus frutos. A propagação da Magonia pubescens a partir de sementes é um processo que reflete a natureza de sua origem no Cerrado, exigindo condições específicas, mas recompensando com uma árvore de grande valor cultural e ecológico.
O ciclo começa com a coleta dos frutos, que deve ser feita quando as grandes cápsulas estão maduras e secas. As sementes aladas podem ser facilmente extraídas do interior do fruto. Por serem sementes grandes e de uma árvore de clima sazonal, elas podem apresentar algum grau de dormência. Deixar as sementes de molho em água por 24 a 48 horas antes do plantio pode ajudar a acelerar e uniformizar a germinação.
A semeadura deve ser realizada em um substrato que imite as condições do Cerrado: arenoso e muito bem drenado. Uma mistura de areia, terra e um pouco de matéria orgânica é ideal para evitar o acúmulo de umidade, que pode ser fatal para as raízes. As sementes devem ser plantadas com a asa voltada para cima ou deitadas, cobertas por uma fina camada de substrato (cerca de 1 a 2 cm). A germinação pode levar de 30 a 60 dias.
As mudas de Tingui devem ser cultivadas a pleno sol e são adaptadas a um regime de pouca água. As irrigações devem ser esparsas, permitindo que o substrato seque bem entre elas. O crescimento é lento, uma característica de árvores de Cerrado que investem na formação de uma casca espessa e de um sistema radicular profundo antes de se lançarem em altura. As mudas estarão prontas para o plantio no local definitivo quando atingirem de 30 a 50 cm.
O plantio da Magonia pubescens é ideal para a restauração de áreas de Cerrado, para a composição de jardins de inspiração naturalista (xeriscaping) e para projetos de etnobotânica. É uma árvore que requer espaço para o desenvolvimento de sua copa ampla e que recompensa com sua forma escultórica, seus frutos espetaculares e a fascinante história que carrega em sua seiva.
Referências utilizadas para o Tingui
Esta descrição detalhada da Magonia pubescens foi construída com base em fontes científicas de alta credibilidade e em uma rica literatura etnobotânica que documenta seus usos tradicionais. O objetivo foi criar um retrato completo que celebra sua biologia única, sua profunda conexão com as culturas brasileiras e seu papel fundamental nos ecossistemas do Cerrado. As referências a seguir são a base de conhecimento que sustenta esta narrativa.
• Ferrucci, M.S.; Somner, G.V. Magonia in Flora e Funga do Brasil. Jardim Botânico do Rio de Janeiro. Disponível em: <https://floradobrasil.jbrj.gov.br/FB20906>. Acesso em: 21 jul. 2025. (Fonte primária para dados taxonômicos, morfológicos e de distribuição oficial).
• Lorenzi, H. 1998. Árvores Brasileiras: Manual de Identificação e Cultivo de Plantas Arbóreas Nativas do Brasil, Vol. 2. 1ª ed. Editora Plantarum, Nova Odessa, SP. (Fonte essencial para informações práticas sobre cultivo, usos e características gerais).
• Almeida, S.P. de, et al. 1998. Cerrado: espécies vegetais úteis. Embrapa-CPAC, Planaltina, DF. (Referência chave para os usos tradicionais de plantas do Cerrado, incluindo o Tingui/Timbó).
• Ribeiro, J.F. & Walter, B.M.T. 2008. As principais fisionomias do bioma Cerrado. In: Sano, S.M., Almeida, S.P. & Ribeiro, J.F. (Eds.). Cerrado: ecologia e flora. Embrapa Cerrados, Planaltina, DF. pp. 151-212. (Contextualização da ecologia e das adaptações da flora do Cerrado).
• Joly, C.A., Felippe, G.M. & Melhem, T.S. 1980. Taxonomic studies in Magonia St.-Hil. (Sapindaceae). Brittonia, 32(3), 380-386. (Estudo taxonômico de referência para o gênero).
• Saint-Hilaire, A. de. 1824. Histoire des plantes les plus remarquables du Brésil et du Paraguay. (Obra original onde a espécie foi descrita pela primeira vez).
















